terça-feira, 22 de março de 2011

Canto Para Minha Morte



Eu sei que determinada rua que eu já passei
não tornará a ouvir o som dos meus passos
tem uma revista que eu guardo há muitos anos
e que nunca mais eu vou abrir
cada vez que eu me despeço de uma pessoa
pode ser que essa pessoa esteja me vendo pela última vez
a morte, surda, caminha ao meu lado
e eu não sei em que esquina ela vai me beijar.
com que gosto ela virá?
será que ela vai deixar eu acabar o que eu tenho que fazer?
ou será que ela vai me pegar
no meio de um copo de uísque?
na música que eu deixei pra compor amanhã?
será que ela vai esperar eu apagar o cigarro no cinzeiro?
virá antes de eu encontrar a mulher
a mulher que me foi destinada
e que está em algum lugar me esperando
embora eu ainda não a conheça?
vou te encontrar vestida de cetim
pois em qualquer lugar esperas só por mim
e no teu beijo provar o gosto estranho
que eu quero e não desejo, mas tenho que encontrar
vem, mas demore a chegar
eu te detesto e amo morte,
morte, morte que talvez
seja o segredo dessa vida
qual será a forma da minha morte?
uma das tantas coisas que eu não escolhi na vida
existem tantas: um acidente de carro
o coração que se recusa a bater no próximo minuto
a anestesia mal aplicada, a vida mal vivida
a ferida mal curada, a dor já envelhecida
o câncer já espalhado e ainda escondido
ou até, quem sabe,
um escorregão idiota num dia de sol
e a cabeça no meio fio
ó morte, tu que és tão forte
que matas o gato, o rato e o homem
vista se com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar
que meu corpo seja cremado
que minhas cinzas alimentem a erva
e que essa erva alimente outro homem como eu
porque eu continuarei nesse homem
e nos meus filhos
na palavra rude que eu disse pra alguém que eu não gostava
e até no uísque que eu não terminei de beber.


Raul Seixas

quinta-feira, 17 de março de 2011

Arte poética


Fitar o rio feito de tempo e água
e recordar que o tempo é outro rio,
saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.

Sentir que a vigília é outro sonho
que sonha não sonhar e que a morte
que teme nossa carne é essa morte
de cada noite, que se chama sonho.

No dia ou no ano perceber um símbolo
dos dias de um homem e ainda de seus anos,
transformar o ultraje desses anos
em música, em rumor e em símbolo,

na morte ver o sonho, ver no ocaso
um triste ouro, tal é a poesia,
que é imortal e pobre. A poesia
retorna como a aurora e o ocaso.

Às vezes pelas tardes certo rosto
contempla-nos do fundo de um espelho;
a arte deve ser como esse espelho
que nos revela nosso próprio rosto.

Contam que Ulisses, farto de prodígios,
chorou de amor ao divisar sua Ítaca
verde e humilde. A arte é essa Ítaca
de verde eternidade, sem prodígios.

Também é como o rio interminável
que passa e fica e é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
e é outro, como o rio interminável.


BORGES, Jorge Luis. O fazedor. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.