Discorrer sobre essas ruas é discorrer sobre cada fio de uma toalha. Algumas ruas eram tão paralelas que acabavam constituindo uma única linha reta. Só para se ter uma idéia, a rua Albertina Cardozo era um mero reflexo da rua Eustásio Cardozo.
Durante meses discorri sobre as ruas de Milagres ao meu psiquiatra, detalhando os ruídos, os musgos nas sarjetas, os sulcos abertos pelas rodas das carroças, o silêncio e o abandono. Uma dessas ruas – não me lembro qual – era uma linha morta. Nela havia entulhos. Cachorros à noite farejavam o chão procurando o arraial.
A rua Artur Cardozo era extremamente curta, medindo no máximo três metros. Era a rua onde eu brincava na areia e quando chovia ficava espiando a enxurrada. Quando Ambrósio foi baleado nessa rua, tombou com as botinas na rua Charles Cardozo e o sangue gotejou na rua Getulio Cardozo.
A rua Antonio Cardozo era onde amanhecia primeiro. Onde primeiro se ouvia o galo bater asas e cantar.
As ruas entrelaçavam-se sobre morros, grotas, capoeiras, constituindo uma verdadeira família: a rua Eustasio Cardozo prolongava-se na rua Alzira Cardozo e fundia-se de vez com a rua Albertina Cardozo e Francisco Cardozo, sendo que quem andava sobre uma delas estaria andando sobre as demais. O mesmo ocorria com as casas e os logradouros, pois no quintal da casa de Antonio Cardozo foi construída uma praça com o seu nome e o casal de namorados que vinha à praça vinha à casa de Antonio Cardozo.
O restante da topografia não diferia daquela descrita nos contratos, memoriais descritivos, com terrenos baldios, tapumes, servidão de passagem pisada por gado, grutas, barranco de córrego com avencas, açudes, brejos, etc.
Sobre o autor:
Getulio Cardozo, é poeta, advogado e também é ilustrador.
Dri,
ResponderExcluirBela crônica do Getulio. Aliás, acho que não poderia dizer que é uma crônica, pois transcende qualquer gênero. É um poema puro.
Rafael